#10 - Rasgar a seda
O dia em que dissociei para não me dar o direito de ser feliz.
Para ler ouvindo: Chelsea Wolfe - Grey Days
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Uma breve nota: essa é a #10 porque eu pulei mesmo, foi mal, he he.
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Era quarta-feira à tarde e eu andava atarantada pelo apartamento, colocando e tirando um vestido que não me servia direito, comprado pela internet, de um site da China. Só os sites da China tem roupas plus size de todo tipo, o que é meio complicado. Apesar de ser lindo como o figurino de uma moça da família Soprano, era feito com uma seda meio vagabunda de plástico, cheio de rosas vermelhas impressas. Quente como o inferno, e estamos falando de dezembro no Brasil, em pleno aquecimento global. Como mulher grande que sou, ficou apertado no meu peito, num decote além de profundo, que se segurava só com um fitilho pra não ser pornográfico. Nada ali estava no lugar, apesar de até parecer se alguém olhasse de fora.
Aquele dilema de tira-e-põe na frente do espelho foi vencido pelo inevitável: qualquer tecido vagabundo que é colocado à prova não tem vergonha de mostrar para o que veio. Um rasgo bruto e enorme nas costas abriu próximo à costura na cintura. Não tive dúvidas, então: eu usei o vestido verde de sempre pra receber o primeiro prêmio relevante da minha vida.
Só que, quando o vestido rasgou, alguma coisa na realidade rasgou junto.
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A quarta-feira dos fatos narrados acima aconteceu na semana seguinte à CCXP, evento que todo quadrinista sabe que é o mais insano do ano, no começo de dezembro. Ficamos vendendo nossos livros, prints e cacarecos em uma mesa por cinco dias dentro de uma parque de diversões cyberpunk. As cores mais coloridas, as marcas em neon e cosplays de toda sorte de orçamentos.
Depois de cinco dias ininterruptos, luzes e sons desse advento passam os outros trezentos e sessenta no nosso imaginário e, com certeza, reaparecem nos sonhos de alguns para aterrorizar. Sem falar que é o período do ano em que vemos uma parte muito relevante dos nossos colegas da cena de quadrinhos. Os gatilhos de impostor estão postos por todos os lados.
Nesse semana já tinha colocado minha coragem toda à prova lançando meu novo livro, homônimo à essa newsletter. A Casa no Alto da Colina foi um arroubo de autoestima que beira à insanidade, pois acreditei que poderia fazer um livro não só com meus textos, mas com meus desenhos pela primeira vez. Parece que as pessoas gostaram, o que me deixou surpresa e feliz.
Além disso, nessa altura do campeonato, todo mundo já sabia que eu e Al Stefano, meu companheiro de aventuras de quadrinhos e desenhista, havíamos vencido com O Fantasma da Ópera em São Paulo em três categorias o HQMix, um dos prêmios mais tradicionais de quadrinhos do Brasil. Até agora ainda me custa a acreditar que esse dia chegou, depois de tantas e tantas que passei na minha carreira. Sem falar que descobri que ganhamos mais um prêmio durante a CCXP, o da Aberst, de melhor quadrinho e suspense do ano, pelo mesmo título.
Então as pessoas passaram não só a me parabenizar, mas a falar comigo. Gente que nunca me percebeu ou notou a minha existência se surpreendendo com o movimento de desenhar algo com minhas próprias mãos. E isso começou a ressoar de uma forma muito estranha dentro da minha cabeça. Era como se não estivesse acontecendo comigo e, quando penso nisso, parece muito esquisito pois eram coisas que sempre quis viver. A retribuição ao meu trabalho também, afinal, era um desejo.
Mas tudo o que aconteceu nos anos anteriores foi muito complicado, pra dizer o mínimo, e esse momento ainda fazia parte desse ciclo. Eu briguei, estive no meio de intrigas (algumas alheias) e, por isso, cometi afastamentos de diversas pessoas da minha vida (muitas até mesmo sem maiores explicações). Esses fantasmas me colocaram em um lugar suspenso, de onde eu não tinha controle nenhum da realidade. Acho que talvez esse momento seja a realização de uma das minhas grandes fobias internalizadas por anos de autocobrança. A sensação de sussurros, da raiva silenciosa de me enxergarem naquela posição, de ser percebida e comentada talvez por causa das coisas ruins, me deixou apavorada.
Mesmo racionalmente sabendo que ninguém se importa.
Mesmo racionalmente sabendo que ninguém tem controle das coisas.
Comecei a não sentir mais nada como Larissa já no meio do sábado da CCXP, e o véu terminou de se rasgar na quarta seguinte.
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Devidamente arrumada, mesmo com a roupa que não queria e mesmo odiando minha aparência que não coube no vestido planejado, coisa que também teve totalmente relação com os fatos a seguir, seguimos para o evento.
No meio do caminho, dentro do Uber, tive uma surpresa.
O Sesc da Nove de Julho, local onde fica localizado em frente ao apartamento de uma ex-chefe que tive. Eu só consigo chamá-la hoje em dia de Rainha de Copas (cortem as cabeças!). Era 2018 e um dia ela me pressionou contra a parede: precisava escolher entre a minha carreira nas agências de publicidade ou então aos quadrinhos a quem me dedicava tanto nas horas vagas e às vezes deixava de bater o cartão (quem poderia me impedir como CNPJ?). Um pouco antes de ser uma grandessíssima escrota comigo. Ela, sua sócia e uma funcionária.
Ali estava eu, escolhendo os quadrinhos e recebendo um prêmio na frente da casa dela, onde agora é a sua empresa fracassada, pois escolhi viver algo pra mim e não mais sustentar o sonho dela.
Contei essa histórias em voz alta pros meus acompanhantes do Uber e essa foi a única vez que o motorista, calado de tudo, fez um comentário. Como proletariado que somos, é uma boa história de vingança pessoal e ressoou nele também.
Talvez esse tenha sido uma das poucas coisas que me lembro de curtir aquele dia com placidez e de fato me lembrar com detalhes depois.
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Ao chegar no evento, tudo começou acontecer com uma certa rapidez que me deixou desconsertada. Mas talvez tenha sido só minha percepção. Lembro que conversei de forma agradável com algumas pessoas, como o Laudo. Depois falei com as garotas do Gibi de Menininha.
Quando percebi, estava sentada no auditório, ao lado do Rafael. Ele subiu e falou, e foi muito bom. Ele está acostumado. Não nos citamos nos discursos porque também me incomoda ser relacionada a outro homem que está a mais tempo no mercado e talvez ser por causa dele que eu estava ali. Não é, faço quadrinhos desde muito antes dele chegar na minha vida. Mas essa era minha primeira vez no palco de uma premiação. Eu não conhecia essa sensação (terror).
Já nervosa durante todo aquele dia, parei de conseguir me concentrar em qualquer coisa já lá atrás no Uber, mas agora estava pior.
E aí eu, Betão (Al Stefano) e Daniel Esteves estávamos no palco. E eu fui a primeira a falar.
Agradeci, falei do meu pai, falei que dedicava o prêmio as mulheres teimosas, que era foda fazer quadrinhos e...
Não me lembro de mais nada.
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Fui saber mais ou menos o que estava acontecendo de novo na saída do prêmio. E não por uma coincidência. Uma pessoa que me viu com os prêmios na mão ao lado do Rafael me ignorou e falou só com ele. De propósito, o que foi muito esquisito. E foi assim que minha mente voltou a funcionar por um momento. Porque era o lugar que minha consciência conhece e acha que me tem por direito e foi colocado por muito tempo.
O de acompanhante. O de enfeite. O de sombra.
Pelo menos me deu a chance de ficar feliz por um convite maravilhoso que recebi ali na saída, com um abraço maravilhoso. Essa é uma novidade pra outra hora.
Depois relaxei e fiquei fazendo piada sobre isso. Meu nome era Dirce (ou qualquer nome considerado boomer) e eu era contadora, estava ali pra contar pra Larissa depois o que tinha acontecido. Deve ter sido Dirce que rasgou meu tecido, impaciente pra assistir as coisas boas da vida acontecendo uma vez ou outra pra variar.
Todos queriam ir para o mesmo lugar comer e beber em comemoração, mas estava lotado. Eu, o Rafa e mais algumas pessoas desistimos, e andamos meio sem destino pelo Bixiga até encontrar comida de verdade na Achiropita.
Foi um alívio estar confortável com poucas pessoas que gosto em volta.
Comemos fogaça. E rimos. Vi um menino que cresceu na minha frente fumando cigarro ao lado do pai, que não podia fazer nada pois era um cavalo de mais de 20 anos de idade. Rimos mais uma vez. Aí sim, consegui me sentir feliz com meus troféus da Muriel da Laerte na mão.
As coisas simples me trouxeram de volta. O leme estava na minha mão de novo.
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Estou contanto isso aqui pois fiquei refletindo sobre como foi emocionalmente esquisito estar onde sempre desejei. A sensação de não merecimento imputada na minha cabeça por tantos anos, em tantas situações, foi tão latente que eu de fato precisei dissociar e olhar de fora e deletar da minha mente o que aconteceu de bom comigo àquele dia.
Eu não lembro de 75% do discurso que dei em cima do palco. E ainda não tive coragem de ver o vídeo.
Não estar na minha melhor forma física, não estar com a roupa que planejei, não ser amada por todo mundo, essas coisas muito virginianas da minha parte, sabe. Não me permitir viver o que merece mesmo não sendo perfeita foi extremamente doloroso. Um mês depois, essa experiência de stress mental se somatizou na minha pele em uma alergia esquisita, que está custando a passar. Já estive em situação de plástico bolha, agora pareço um dalmata.
Eu me pergunto se qualquer uma das outras pessoas ali passou por isso. Todos pareciam muito plenos e felizes e queria muito entender como funciona a mente de alguém que se permite ser feliz. Sempre ouvi a seguinte frase: pra gente as coisas são mais difíceis. E, dentro de mim sempre rejeitei isso. Quer dizer, pode ser difícil, mas eu vou conseguir sim. Não vou ser uma artista frustrada. Não vou me render a minha chefe tirana que quer me fazer escolher entre coisas.
Mas e o rasgo na minha mente, de tantos anos me desrespeitando e achando que mereço menos? Como eu deixei isso me vencer num dos melhores dias da minha vida? Espero que, pelo menos, das próximas vezes que vencer um troféu (por que eu vou) eu já esteja mais acostumada com as coisas boas da vida.
E que a Dirce vá para o quinto dos infernos com meu vestido rasgado. Canalha.


Me identifiquei muito com a parte de dissociar pra lidar com situação difíceis. Eu acho que eu faço isso desde os anos difíceis da faculdade. Quase um "Ruptura" de mim mesmo que saía de casa 7h e chegava 23h30. Faço isso em eventos, em festas, em campeonatos, em viagens... Talvez seja meu ascendente em gêmeos. Ou talvez algo pior que um dia vou ter que lidar. Mas espero que você esteja melhor! E parabéns de novo pelos prêmios! Você merece demais.
você merece (e vem aí) todos os prêmios e coisas boas do mundo <3